Escrito > Paula
Maciulevicius
Nascida na Aldeia
Bananal, em Aquidauana, Kalymaracaya quer que o mundo conheça os sabores e a
cultura terena.
Kalymaracaya tem, além
dos traços e do nome, o sangue e a vontade de levar a cultura terena para o
mundo. Nascida na Aldeia Bananal, em Aquidauana, veio aos 5 anos para a cidade
com a família, por vontade da mãe, que queria que os filhos tivessem mais acesso
à saúde e educação. Mas nunca esqueceu as raízes e
principalmente o que saía da panela da avó, Chica.
Nascida na Aldeia Bananal, em Aquidauana, Kalymaracaya quer que o mundo conheça os sabores e a cultura terena. (Foto: Marina Pacheco) |
"Mesmo vindo para
cá, eu continuava passando todas as férias escolares na aldeia. Minha avó era
uma exímia cozinheira e eu tinha muita curiosidade em fazer doce, assar alguma
coisa. Ficava no pé dela para aprender", conta Kalymaracaya, de 35 anos.
Do pai, a menina
ganhou o apelido de "beroula", por ficar sempre na beira das panelas.
"Essa menina só fica beirolando, ele dizia. E foi ali que comecei a
gostar, desde criança", completa.
O interesse ficou mais
claro a medida em que a menina foi crescendo. Na cidade, Kalymaracaya se chama
"Letícia", mas quando decidiu seguir o caminho da Gastronomia,
resgatou o nome terena que na tradução, significa "gatinha".
Hî-hî servido com carne de porco |
"Kaly é pequeno e
maracaya, gato. Todos os terena têm nome de animais, só que está ficando
esquecido quando as pessoas vem para a cidade. Aqui sou Letícia Terena, mas
como vai chamar atenção? Então vou ser a Kalymaracaya", se apresenta.
Com a vontade e o gosto
de cozinhar, ela percebeu também o preconceito que gira em torno do índio,
especialmente num estado como Mato Grosso do Sul. "Aí eu vi como uma
necessidade mesmo, o índio não pode ficar sendo desvalorizado e eu quero ter
uma participação nesta trajetória. Vi assim a oportunidade de mostrar a
gastronomia que é rica, todo mundo quer saber por que a gente dança, como fala,
se veste. Juntei tudo e estou levando Brasil afora", exemplifica.
Como aqui não tinha faculdade de
Gastronomia e fazer em São Paulo estava fora do orçamento, Kalymaracaya cursou
primeiro Turismo, se apaixonou pela área de alimentos e bebidas e se
especializou em Gastronomia. O último curso técnico foi do Cepef,
terminado em 2012.
Hî-hî servido com doce de guavira |
"Meu sonho era
desse de crescer e ser chef e ninguém acreditava. As pessoas diziam: 'quem vai
querer comer comida indígena? Ninguém'. Eu levei muitos nãos na minha cara, muitas
portas foram fechadas por causa disso", narra.
Profissional - Já
formada, começou a ir atrás de chefs que pudessem lhe auxiliar na empreitada. O
primeiro foi Fábio Cunha, para quem mandou um pedido de amizade no Facebook
depois de vê-lo numa entrevista. "Ele disse que não morava em Campo
Grande, mas tinha um amigo que ia gostar da minha gastronomia, para eu
procurá-lo", lembra. O amigo era o chef sul-mato-grossense, Paulo Machado.
"Demorei dois
meses para mandar o convite, pesquisei na internet e fiquei com vergonha, será
que ele ia me responder? Eu mandei mensagem pra tanta gente e nunca me
responderam. Ele respondeu e nos conhecemos pessoalmente", descreve.
Hî-hî servido com doce de tomate |
Paulo Machado a
colocou em contato com outros chefs que poderiam ver a riqueza da cultura no
sabor da comida terena. "Ele foi um grande incentivador meu e todo mundo
falava que era uma ideia absurda, num estado de fazendeiro, como que eu poderia
levar isso? E eu sempre falava: vai dar certo". A partir daí, grandes
encontros surgiram para a terena, inclusive participações em festivais de São
Paulo, Pará, Amazônia e até na Bolívia.
"Eu tenho três
convites para o México e um para a Espanha. Só que eles não patrocinam
passagem, só hospedagem e alimentação e aqui ninguém patrocina e eu não tenho
condições de financeiras de ir", comenta.
O carro-chefe - A
receita da avó e o principal da gastronomia de Kalymaracaya é o hî-hî, feito a
partir de mandioca e folha de bananeira. "Ele te um toquezinho de chef,
mas vou te falar como é feita a receita tradicional, da aldeia", enfatiza.
"Na aldeia, se
pega a mandioca in natura, descasca, tira o "pavio" e rala usando a
parte mais fina do ralador. Em seguida, coloca na água, pega um pano e
"torce" a massa, para então passar para a folha de bananeira, que
inteira é selada no fogo.
Depois coloca três
colheres daquela massa de mandioca na folha, fecha e enrola com folha de
bocaiúva ou barbante. Coloca na água para ferver 20 minutos e está pronta a
hora que mudar de cor. Do verdinho, para o quase marrom", explica.
Ao lado do chef Paulo Machado, em evento em Corumbá |
Dado o ponto, já pode desligar e o prato pode ser servido com a folha de bananeira ou sem. "Sirvo com carne de porco, mas pode ser feito com peixe, frango e também com doce de guavira, goiaba ou tomate".
A receita é a original
da avó Francisca. "Aí eu falo da cultura, que é uma coisa que fora daqui o
povo quer saber muito. Sobre música, dança. Eu estudo e também ouço muito os
idosos na aldeia, eles têm história pra contar", afirma.
Prêmio Dólmã - "Nunca
vi uma chef indígena" é a frase que Kalymaracaya mais ouve. E a vontade de
valorizar isso ganhou incentivo com a indicação ao Prêmio Dólmã 2016,
considerado o Oscar da Gastronomia. Por voto popular, a terena está concorrendo
com outros dois chefs, Edu Rejala e Adriana Torres, a etapa estadual do Prêmio.
"Por enquanto
estou concorrendo o estadual, mas quero concorrer no nacional. Mas já estou
muito contente com tudo o que estou fazendo", diz. Sobre onde quer ver
chegar a gastronomia terena, Kalymaracaya responde sem titubear. "Para o
mundo. Não é puxando sardinha para a minha tribo não, mas a melhor dança e a
mais bonita é a terena. Tanto a dança, quanto a vestimenta e a língua", se
orgulha.
O sonho é o de um dia
abrir um restaurante que reúne comida, arte e dança terena. "E eu ainda
vou realizar. Vai ter tudo terena. Por enquanto, eu divulgo nos festivais.
Ainda não tenho uma estrutura montada aqui, mas estou trabalhando com as minhas
próprias forças, meio que sem apoio financeiro, mas dando a cara à tapa para
fazer a diferença".
Fuente > Lado B – 16
de Noviembre de 2.016
No hay comentarios:
Publicar un comentario