Por Marcio Camilo/Amazônia Real
Líder reconhecido mundialmente, que ficou duas semanas internado numa UTI de Goiânia, lutou por décadas pelos direitos dos povos indígenas.
A perda do Xingu inteiro. A morte de Aritana Yawalapiti, de 71 anos, para a Covid-19, representou um duro golpe para parentes, amigos e indígenas de várias etnias. O “diplomata do Alto Xingu”, uma das várias lembranças associadas a Aritana, morreu na manhã desta quarta-feira (5), depois de duas semanas de internação na UTI de um hospital de Goiânia (GO).
Em nota de falecimento, a família do cacique destacou que Aritana era uma das maiores e mais antigas lideranças do Alto Xingu. A nota destaca que ele foi nomeado cacique aos 19 anos de idade, durante a década de 1980.
“Ele era um dos últimos falantes do idioma tradicional de seu povo, o Yawalapiti, mesmo nome da etnia. Além de guardar a memória de sua língua natural, Aritana também falava português e outros quatro idiomas tradicionais indígenas”, destacou a nota.
“A perda do meu tio Aritana é a perda de 98% da nossa língua. Significa para a gente muitos desmontes”, lamentou a liderança Watatakalu Yawalapiti, sobrinha do grande líder, a quem também chamava de pai, em nota de pesar divulgada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
É ela quem resumiu que, sem a presença de Aritana, uma das maiores e mais antigas lideranças indígenas do País, a Terra Indígena Xingu se torna ainda mais ameaçada. Para ela, os jovens precisam agora transmitir os conhecimentos deixados por Aritana.
Até antes de ficar doente, Aritana tinha lançado uma mobilização para construir um hospital de campanha no Alto Xingu, para defender o seu povo contra a disseminação do novo coronavírus.
“Lutou até o último momento contra a religião do homem branco que estava entrando na nossa aldeia. É uma perda irreparável para minha família. É um buraco que se abre debaixo dos nossos pés”, afirmou Watatakalu.
Na nota de pesar, a Coiab resumiu: “Era um grande defensor da luta pela preservação e perpetuação da cultura de seu povo para as novas gerações, e constantemente denunciou o efeito do desmatamento no entorno do seu território, como extinção de peixe dos rios e contaminação das águas”.
A morte de Aritana teve repercussão internacional, com sites estrangeiros noticiando o óbito dele, como a agência Reuters e o francês Tribune de Géneve.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica), que representa nove países, também manifestou condolências em sua rede social.
Poliglota, Aritana era um dos últimos falantes de sua língua tradicional, yawalapiti, mas também se comunicava em caribe, tupi e na língua portuguesa. Isso o tornava uma liderança respeitada por outras etnias.
Ana Paula Xavante, que se identifica como prima de consideração do grande líder, ressalta que Aritana era conhecido como o “grande diplomata do Xingu”, muito cordial, e apesar de cacique, escutava a todos, sendo muito democrático em suas decisões.
“O Brasil perde hoje, talvez, o indivíduo indígena mais importante. Aritana era esse homem fabuloso, íntegro, capaz de seduzir príncipes e receber reis, presidentes de Repúblicas, era uma pessoa de um grande caráter e sem vaidades”, resumiu Adelino Mendez, amigo de longa data de Aritana e antropólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A promotora do Ministério Público Estadual de Mato Grosso, Solange Linhares Barbosa, que atuou na comunidade alto-xinguana, escreveu em suas redes sociais: “Lutou até o último segundo, como o grande guerreiro Yawalapiti que sempre foi. O seu legado não tem tamanho e nunca será esquecido”.
O DRAMA DOS ÚLTIMOS DIAS
Em 19 de julho, Aritana estava em sua aldeia quando teve uma crise respiratória e, a partir dos sintomas, foi diagnosticado com Covid-19. Em seguida foi internado em um hospital de Canarana (MT). Ele era hipertenso. Dois dias depois, seu estado de saúde se agravou, e ele precisou ser transferido para um hospital de Goiânia (GO), que dispunha de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Como os médicos do Xingu não conseguiram UTI aérea, ele teve que fazer uma viagem de ambulância, de mais de mais de 10 horas, com um cilindro de oxigênio, até chegar à unidade em Goiânia.
“Foi uma falta de respeito do Estado brasileiro com outro chefe de Estado, por não ter conseguido a UTI aérea. Ele passou um dia inteiro em uma ambulância, com os balões de oxigênio até chegar ao hospital”, criticou Ana Paula Xavante. O caso de Aritana Yawalapiti era grave. Quando foi retirado do Xingu, mais de 50% do pulmão estava comprometido pela Covid-19, lembrou Ana Paula.
No dia 25 de junho, Aritana perdeu o seu irmão Matarywá, conhecido como Juvenil, para a Covid-19. Ele também era outra importante liderança do Alto Xingu. A essa altura, o novo coronavírus já havia se espalhado nas aldeias Yawalapiti.
Em todo o Xingu, vivem 16 povos indígenas. São cerca de 7 mil pessoas, em 114 aldeias. Só no Alto Xingu – onde morava Aritana – residem 11 povos: Aweti, Kalapalo, Kamayurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Trumai, Wauja e Yawalapiti. A terra indígena tem 2.642 hectares de área, com fortes indícios de presença de povos isolados. A disseminação do coronavírus obrigou ao cancelamento, pela primeira vez em 50 anos, do Kuarup – o maior ritual em homenagem aos mortos entre indígenas brasileiros.
A PERDA DE UM AMIGO
À Amazônia Real, o antropólogo Adelino Mendez destacou que Aritana foi um dos grandes responsáveis, juntamente de seu pai, o cacique Kanato Tepori, pelo resgate cultural da sua etnia.
“Passou cinco anos preso, recluso dentro da sua casa, ouvindo os ensinamentos do Kanato, da mãe, dos tios e avôs paternos. Foi um homem preparado na mais alta cultura Yawalapiti, etnia que nos anos 1950 estava desaparecendo. Eles sumiram na década de 1930 e ressurgem após a chegada dos irmãos Villas Boas. Através de alguns contatos como os Kuikuros, são reagrupados, reconstituem suas aldeias e se tornam um povo importante na estrutura social e cultural do alto Xingu”, explicou Mendez.
Estudioso da cultura Yawalapiti, o antropólogo ressaltou que o nome Aritana reaparece há centenas de anos, uma tradição repassada de avô a neto. “Há duzentos anos surgia no nome dele. As pessoas mencionam grandes homens chamados de Aritana. Tataravôs, bisavôs… o nome na cultura xinguana é sempre de avô a neto. Uma geração sim, uma geração não”, ensinou.
“Eu vejo o Aritana como o último Aritana. Aquele cara que você quer ficar perto. Que não sabia o que era ser chefe, sabia liderar, as pessoas o ouviam, ele nunca pedia. Ele só dava. Se chegava uma melancia na aldeia, Aritana dava um pedacinho para todo mundo comer”, recordou Mendez, muito emocionado. “Não era o índio da televisão, mas é o índio do amor, das pessoas. Homem político, inteligente, conhecido no mundo inteiro, que fazia tudo para não sair de sua aldeia. Foi meu irmão, ajudou na minha formação, como antropólogo, como homem”, lamentou.